Razão e Saúde Mental

06/10/2023     Reforma Psiquiátrica
Joubert Karpeggiane de Oliveira

As implicações da noção de razão em saúde mental.

Tempo de leitura: 8 minutos.

Descartes privilegia a razão, pois quem não pensa não existe e a partir daí a razão denuncia a loucura, embora não especifique suas formas de aparição. Louco aquele que se identifica com o animal pois não pensa. Nesse contexto, o sujeito não era para ser curado e sim domado. A loucura era vista como desrazão misturada à paixão descontrolada. O sujeito encontrava-se fora de si. Aquele que era desprovido de razão, consequentemente era louco e consequentemente era internado.

Levar em conta a visão racionalista como única forma de compreensão do humano em um tratamento de saúde mental, desconsiderando a experiência do sujeito, pode ser trágico e causar um dano inimaginável. Apontando para um contexto histórico, principalmente entre a metade dos séculos XVI e XVII, seria o mesmo em dizer: os que não pensam, não existem. René Descartes é o percussor do uso da razão para a compreensão do mundo, verificação das evidências e do pensamento científico.

Na quarta parte do seu discurso sobre Método, ao ocupar-se com a pesquisa da verdade, rejeitando absolutamente tudo que pudesse ser imaginado sem a menor dúvida, reflete sobre quem é, se possuía um corpo e se o mundo realmente existia, considera ser necessário uma proposição verdadeira e certa, acabando por encontrar 

uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E, tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir (DESCARTES, 1973, p. 22-23, grifo nosso).

Na premissa do “Cogito Ergo Sum” o que está em voga não é o raciocínio, mas uma constatação do fato, dando ao Cogito o aspecto de um raciocínio, insistindo na substanciação alma como puro pensamento em detrimento a substância corpo, fortalecendo uma natureza intelectual da alma. Posto isso, para depreender que um homem existe, é necessário dotado de razão (virtude), em outras palavras, sem o pensamento nada existe.

Para pensar, é preciso existir, e quem não pensa, existe? Essa é a implicação magna que faz ‘Razão’ fundar a ‘Loucura’. Pensando na história da loucura, é diante desta concepção que os séculos XVII e XVIII enxergam o louco como um ser desprovido de razão, categorizados desajustados socialmente, doentes físicos/mentais ou associados a vagabundo, bêbado, devassos, blasfemos, libertinos, beberrões, com rara exceção, um sábio. Essa visão estigmatizante era capaz de produz à internação, exclusão, punição e agressividade, com o objetivo de corrigir os comportamentos indesejados e produzir o arrependimento de suas ações (FOUCAULT, 2010a. p. 111-134).

Fato é que o experimentalismo reinou nestes séculos com o chamado tratamento simbólico, utilizando-se de pedras preciosas, excrescências do homem, leite materno, sangue humano, pó de crânio, veneno de serpentes e tantos outros artifícios de cura atrelados as suas crenças, muitas vezes religiosas, na tentativa de curar da desrazão (FOUCAULT, 2010b, p. 334-38).

Importante ressaltar que as práticas médicas não se encontravam nas mãos dos próprios médicos, tendo todo um corpus técnico da cura pertencente aos empiristas fiéis, com suas receitas, números, símbolos e ritos que nem os médicos conheciam ou a medicina conseguiam controlar. Mesmo ligadas a práticas extra médicas e empíricas, com o passar do tempo esta realidade foi mudando, estabelecendo os médicos como detentores de um saber curativo, com suas prescrições, descrições das etapas curativas, perseguição das causas da doença, correção e progressiva melhoria dos tratamentos (FOUCAULT, 2010b, p. 338).

Neste período nasce a possibilidade da psiquiatria da observação, diálogo entre o louco e o médico, que de Pinel a Freud, propunham ideias terapêuticas com intuito de organizar uma cura da loucura por meio do diálogo (FOUCAULT, 2010b, p. 339). Mesmo existindo uma prática médica que leve em conta a linguagem, o experimentalismo continuava seu trajeto com odores fétidos, uso de óleos injetados no corpo, queimaduras profundas, sustos, imersão em água gelada, utilização de plantas naturais, irrupções, viagens no mar, a cavalo, uso de equipamentos mecânicos de centrifugação, ameaça, punição, contenção dos comportamentos e tantos outros métodos na tentativa de cura da loucura (FOUCAULT, 2010b, p. 340-361).

A loucura pode ser constatada como uma produção do século XVIII, através dos saberes, práticas e internações em instituições de caráter total. É fabricada pelo saber psiquiátrico na figura do médico que não tratava, mas tinha uma suposta capacidade de diferencia o nobre do louco, tendo o poder de conter, controlar e proteger a sociedade contra a doença da loucura e os perigos derivados dela.

Entre os séculos XVI e XIX crescem as instituições asilares, os hospícios e casas de tratamento, espalham-se por toda Europa e enclausurando todas as pessoas que manifestavam comportamentos estranhos, paixões descontroladas, discursos bizarros, falta de higiene, mudança na alimentação, sono, relações pessoais, sociais ou que supostamente encontravam-se fora de si mesmo.

Um grande avanço ocorre quando se diferenciam as técnicas voltadas para modificar as qualidades comuns do corpo e da alma por meio do discurso. Referindo-se a alma, utiliza-se a técnica da linguagem, possibilitando a razão debater consigo mesma por meio das metáforas, do teatro, da arte e dos sonhos, chagando ao ponto de o médico envolver no próprio jogo delirante do sujeito (FOUCAULT, 2010b, p. 362-370).

Ao final do século XVIII e início do século XIX, sem existir nenhuma alteração nas instituições, o sentido do internamento e da exclusão começa a alterar-se diante do entendendo que a doença procede do orgânico (corpo) e o discurso (alma) diante de patologias. A Psicanálise passa a dizer de uma experiência do desatino, que no mundo moderno a Psicologia teve por sentido ocultar, sendo retomada a loucura ao nível de sua linguagem com a possibilidade de estabelecer uma comunicação com o louco (FOUCAULT, 2010b, p. 373-375).

É desta maneira que a visão cartesiana do mundo traz complicações na condução dos tratamentos de saúde mental, pois desconsidera a experiência do sujeito no processo de tratamento. Se a razão é o que distingue o homem do animal, e o louco é entendido como ser desprovido de razão, o fato de ser visto como um animal sepulta qualquer outra concepção de homem e mundo.

De certo modo, é possível compreender influência da noção de razão no tratamento em saúde mental. A partir do marco Kantiano na produção de saber, a ruptura entre loucura e “normalidade” ganha mais consistência no discurso científico. Contudo, não é o marco o qual coloca a loucura em um lugar submetido aos acordos sociais estabelecidos pelos não loucos, inclusive sobre a tratativa da própria loucura. Ao longo da história, as produções acerca da loucura foram ao encontro de legitimar o lugar do “não louco” como detentor do saber, tratamento e condução aos quais a loucura e os loucos deverem submeter-se. Desse modo, a autonomia, a produção singular e construções de recursos subjetivos são retirados do indivíduo colocando-o em completa posição objetal. Algo que vai de encontro a um tratamento adequado, centrado na pessoa e suas singularidades.

A exatidão Kantiana, apesar de sua proposta de implementação nas produções acerca da sociedade e indivíduo, não pode ser encarada de maneira dogmática. Pois, cada sujeito produz a partir de seus recursos natos e obtidos a partir de sua história e vivência social. Desse modo, há o que foge à regra da exatidão Kantiana. 

Entretanto, se pensarmos que razão é o produto da relação construída entre fatos e sua teorização, podemos pensar que o sujeito pode produzir sua própria razão na loucura, sendo sua razão aquilo que amarra sua leitura de mundo. Pensando nessa relação, onde a produção do sujeito é particular a ele, é possível conduzir o tratamento em saúde mental, a partir da razão produzida pelo indivíduo. Tal condução contribui para o não apagamento do sujeito, e o traz para o foco de seu tratamento, sendo o atendimento conduzido com base em suas particularidades.

REFERÊNCIAS

DESCARTES, R. Discurso do Método. In: Obras escolhidas. Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Difel – Difusão Europeia do Livro, 1962 (col. Clássicos Garnier); 2 ed. 1973. Disponível em: bit.ly/3JjaZRR. Acesso em: 04 jun. 2023.

FOUCAULT, Michel. Médicos e doentes. In: FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2010b. p. 239-375.


Joubert Karpeggiane
Psicólogo - CRP 04/70215

Joubert Karpeggiane
Psicólogo - CRP 04/70215

Fale Comigo
(31) 9 8537 7270
(31) 9 8537 7270

Atendimento
Segunda à Sexta-Feira das: 19h às 22h
Sábado de 8h às 12h
Atendimento com horário agendado.

Consultório - Joubert Karpeggiane
Centro, Pedro Leopoldo - MG, Brasil.

 

Me siga na redes sociais

Consultório - Joubert Karpeggiane
Atenção: Este site não oferece atendimento ou aconselhamento imediato a pessoas com crise suicida. Diante de uma emergência, procure o hospital mais próximo.
Em caso de crise, ligue para o CVV 188. Havendo risco de morte, ligue o SAMU 192 ou Corpo de Bombeiros 193.

©Copyright Joubert Karpeggiane - 2023. Todos os direitos reservados.

Fale comigo AGORA
pelo WhatasApp.
Fale comigo AGORA        
pelo WhatasApp.