O CAPS como dispositivo de desinstitucionalização.
Tempo de leitura: 10 minutos.
A partir de um recorte sobre assistência psiquiátrica brasileira, pode-se dizer que é marcada pela criação de hospitais psiquiátricos desde 1852, constituída por uma sociedade de medica jovem, desenvolvendo-se nos moldes europeus, que exclui os usuários da sociedade civil em seus tratamentos (SOUZA, 2006).
Na década de 50 os hospitais passam por uma super lotação, péssimas condições físicas, cuidados técnicos escassos e automatizados. Em 1964, com golpe militar, ocorre o crescimento de clínicas psiquiátricas privadas conveniadas ao setor público, criando a indústria da loucura por meio da psiquiatrização. Independentemente de ser um setor público ou privado, as baixas condições de saneamento continuavam na década de 70, uma vez que o poder público deixa de exercer qualquer controle efetivo em função da qualidade dos locais e duração da internação (SOUZA, 2006).
Em razão de todos estes acontecimentos sobre a reforma psiquiátrica, ocorre no Brasil o terceiro Congresso Mineiro de Psiquiatria em Belo Horizonte em 1979, encontro fundamental na discussão sobre a reforma, contanto com a presença de Franco Basaglia, Robert Castel, usuários, familiares, jornalistas, sindicalistas e outros profissionais da Saúde Mental.
A partir de ações populares, diálogo e resistência, a concepção de reforma psiquiátrica ganha força no Brasil em 1987, continuando seus avanços sobretudo com o movimento de familiares e usuários através de movimentos sociais. Neste mesmo período histórico, sucede a Reforma Sanitária Brasileira com as Conquistas da Constituição de 1988, que cria e consolidação de um Sistema Único de Saúde e vários conceitos agregados, tais como: território, descentralização, municipalização e vínculo, auxiliando neste processo (SOUZA, 2006.
É a partir da Reforma Psiquiátrica e da participação social por uma sociedade sem manicômios que surgem os equipamentos substitutivos, atuando no formato de rede na atenção à saúde, cooperando para o nascimento do movimento e luta antimanicomial. Um dos equipamentos substitutivos do Hospital Psiquiátrico é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), um dispositivo estratégico na política pública de assistência à saúde mental no Brasil.
O CAPS é um serviço público que opera no formato de rede, prestando serviços de saúde mental a população em geral, principalmente, as pessoas com transtornos mentais e ou necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, quando inexiste o Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Suas atividades são desenvolvidas a partir de um território delimitado, qualificando o cuidado e atenção as urgências.
Importante ressaltar que o CAPS não deve ser tratado como um mero instrumento operador de saúde, pelo contrário, ambiente capaz de produzir cuidado, relacionamentos legítimos entre a equipe de saúde, familiares e sociedade civil, possibilitando experienciar a loucura de forma concreta, palpável e singular no cotidiano. Este equipamento é complexo, atravessado por vários discursos de ordem jurídica, filosóficas, científicas, conjuntado por instituições, estruturas arquitetônicas, atividades profissionais com seus conselhos de classe, dentre outros elementos subjacente ao seu funcionamento.
Para sustentar uma experiência de cuidado e eficácia na desinstitucionalização, tomando o CAPS como um serviço estratégico, três pilares são essenciais para este fundamento: a rede, a clínica e o cotidiano (LEAL; DELGADO, 2007). Acolher o desafio da desinstitucionalização, é enfrentar a dimensão da institucionalização em serviços de saúde mental, para que usuários com grave comprometimento mental possam voltar ao ceio de suas famílias, famílias substitutivas, pensões, repúblicas, apoiados e acompanhados pelo estado.
O desafio da desinstitucionalização para superar o modelo de hospitais psiquiátricos e residências terapêuticas exige uma mudança de perspectiva em relação ao sujeito. Portanto, torna-se inconcebível enxergar as pessoas com base em estereótipos do passado, que categorizavam os “loucos” como os desajustados socialmente, devassos, blasfemos, libertinos, beberrões, portadores de doenças físicas e ou mentais. Essa visão estigmatizante era capaz de produz à internação, exclusão, punição e agressividade, tentando “corrigir” os comportamentos indesejados e produzir o arrependimento de suas ações (FOUCAULT, 2010).
É inteligível que libertar os indivíduos de uma internação permanente requer um trabalho territorial, tecido com a comunidade, usuários da rede de atenção à saúde, familiares e responsáveis, apoiado por direitos sociais que assegurem e garantam sua sobrevivência fora destas instituições. Mesmo sendo uma discussão importante, debatida desde a criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial - Luís da Rocha Cerqueira – Localizado na rua Itapeva, bem no centro de São Paulo/SP a 36 anos atrás, este texto busca olhar para a clínica e o cotidiano, dois sentidos atribuídos ao processo de desinstitucionalização numa perspectiva metodológica.
Agenciar a saída de pessoas com transtornos mentais graves e severos dos hospitais psiquiátricos ou instituições com características totais, requer enfrentar a alienação que estão sujeitas na vida cotidiana, em uma determinada sociedade num dado período histórico. Ocupar-se especificamente deste público, implica entender seu modo singular na constituição da relação consigo mesmo e relação com o mundo. Por possuírem um comprometimento em sua capacidade de relacionar com outras pessoas, adequar-se ao meio social de forma parcial ou total, jamais pode ser considerado por uma perspectiva patológica, anômalas as experiências de pessoas com desempenho normativo.
Deste modo, para a atenção psicossocial, torna-se imprescindível entender as dificuldades deste sujeito adequar-se ao meio, lidar com as novas normas de convivência dos ambientes que frequenta e modifica-lo ao mesmo tempo que é modificado por ele. Privilegiar abordagens e projetos que não levem em conta as experiências particulares de ser e estar no mundo, exigindo adaptações e adaptações abruptas deste público, tornar-se um novo instrumento de correção e alienação, uma nova forma de institucionalização balizada em uma normativa social.
Logo, o desafio atual é compreender melhor o cuidado e o cotidiano desenvolvidos nos serviços de saúde mental, que por vezes, apresentam-se aparentemente empobrecido, vazio, sem sentido, como se estivessem revivendo os hospitais psiquiátricos. A noção de clínica, recebe constantemente vários nomes dependendo de cada autor, caricaturando um modo particular de princípios, preceitos, cuidado, conhecimento e concepção do homem em seu sofrimento, sendo relevante entendê-la a partir da práxis de cada serviços.
A clínica no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é resultado da interação entre o serviço, a comunidade e o sofrimento psíquico do paciente, que produz a intervenção necessária para promoção da saúde mental e a evolução do adoecimento mental. O cuidado permeia o paciente, bem como, a experiência da loucura toda equipe de saúde, requerendo uma postura clínica que considere as estruturas socioculturais e subjetivas de todos os envolvidos, bem como, das atividades laborais realizadas no espaço físico de acordo com o movimento dos usuários.
Neste contexto, considerar as noções de território, rede e cuidado, possibilita criar um novo estilo de tratamento, ofertando condições que abarquem as dimensões políticas, sociais e afetivas, prestando um serviço que leve em conta a história vivida do usuário, seu adoecimento psíquico e o sofrimento decorrente da relação com o Outro, facilitando sua reescritura. Esta é uma das possibilidades de ultrapassar as condições impostas pelo sintoma, que a partir de uma visão cristalizada, condena o sujeito a cumprir um destino sórdido, sofrido e limitado pelo adoecimento.
Entender o cotidiano dos clientes para oferecer um tratamento adequado, que leve em conta a importância da articulação das atividades realizadas no CAPS com a vida fora do serviço, permite superar a dicotomia dentro/fora e transformando os efeitos do cuidado em um objetivo processual (LEAL; DELGADO, 2007). Os usuários graves de saúde mental, por vezes, possuem dificuldade de expressão, utilizando uma linguagem de comunicação que excede os padrões sociais, como comportamentos abruptos na intenção de transmitir algo da experiência, até mesmo, rompimento com a noção de realidade, são relevantes em seu processo de existência e conexão que estabelecem com o mundo em seu existir.
Propõe, da mesma forma, a ideia de rede como ligação viva entre as instituições, permitindo a rearticulação entre os vários atores, quer seja o acompanhamento de um usuário no território, lugares da cidade onde percorre, habita e ou na relação com os espaços sociais que frequenta. Igualmente, existe a necessidade de compreender de forma mais as atividades oferecidas pelo serviço como ferramenta capaz de criar uma conexão entre o usuário e o serviço, a partir daí, com o território, cidade onde vive e com o mundo.
Os autores expõem que as investigações recentes realizadas por Corin (1988, 1992, 2002, 2003), mostram que pacientes esquizofrênicos têm menos recaídas e reinternam menos que os referidos ao cotidiano de instituições psiquiátricas, uma vez que encontram no espaço social um lugar tolerante ao seu modo de estar no mundo (LEAL; DELGADO, 2007). Reforça que os espaços onde são realizados os tratamentos são espaços marginalizados, pois não operam com a mesma performance a que os sujeitos sociais normativos estão amplamente submetidos. O reconhecimento da melhora de quem vive o adoecimento mental está atrelado a irredutibilidade de sintomas, experienciando outras formas de ressignificar seu adoecimento e, não necessariamente, a ausência de delírios, alucinações ou isolamento.
Estes dados expressam que os serviços comunitários devem estar voltados para os territórios, atividades e regras que representem a diversidade dos serviços, espaço capaz de acolher a idiossincrasia de seus usuários, operando a partir delas. Dessa forma, as atividades realizadas no âmbito do CAPS poderão ofertar ferramentas na mudança de perspectiva de acordo com as experiências desses sujeitos, numa articulação viva, processual, dinâmica e de aceitação da singularidade dos sujeitos. Entender o cuidado por este olhar, traduz uma forma de não almejar a restituição do usuário a um padrão de normalidade idealizada por determinada sociedade em um período histórico específico, transformando os efeitos do cuidado num objetivo de constante cinesia.
O vínculo com o serviço e profissionais que nele trabalham é fundamental no funcionamento da rede de saúdem mental, produzindo encontros e separações entre os diversos atores desta trama social, referenciando não apenas o paciente, mas algo deste vínculo gerado na relação com o equipamento, podendo ser retomado a procura do CAPS quando os cuidados novamente se fizerem necessários, acompanhando da evolução/regressão de seu transtorno.
A tematização do encontro entre o usuário, a clínica, o cotidiano e a rede permitem compreender e responsabilizar tanto o CAPS, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e demais atores no território pelo tratamento dessas pessoas no local onde moram, mantendo sob questão do suposto abandono do tratamento pelo paciente. Por fim, entender de forma ampliada a constituição da psiquiatria, a reforma psiquiátrica, o território, a rede, o Centro de Atenção Psicossocial, a clínica, o usuário e o cotidiano, torna-se fundamental para entender a constituição do sujeito, ofertando um tratamento adequado às necessidades dos usuários.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 3088 de 23 de dezembro de 2011. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html. Acesso em: 15 abr. 2023
FOUCAULT, Michel. Experiências da Loucura. In: FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 111-134.
LEAL, E. M.; DELGADO, P.G.G. Clínica e cotidiano: o CAPS como dispositivo de Desinstitucionalização. In: PINHEIRO, R., et al. (Org.). Desinstitucionalização na saúde mental: contribuições para estudos avaliativos. 1a ed. Rio de Janeiro: CEPESC: IMS/LAPPIS: ABRASCO, 37-154, 2007.
MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Saúde. Atenção em Saúde Mental. Marta Elizabeth de Souza. Belo Horizonte, 2006. 238 p.
Joubert Karpeggiane
Psicólogo - CRP 04/70215
Joubert Karpeggiane
Psicólogo - CRP 04/70215
Fale Comigo
(31) 9 8537 7270
(31) 9 8537 7270
Atendimento
Segunda à Sexta-Feira das: 19h às 22h
Sábado de 8h às 12h
Atendimento com horário agendado.
©Copyright Joubert Karpeggiane - 2023. Todos os direitos reservados.